sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Sambas sem enredo

Carnaval é, por excelência, lugar da sátira. Em certos momentos, o tom mais ácido se aviva e ganha ares de protesto. Vindas daquela que é tida como “mais autêntica” manifestação popular, as críticas acabam sendo saudadas como se fossem a apoteose da verdade. Nem sempre se justifica, contudo. Mal endereçadas, transformam queixas genuínas na generalização que interessa a quem mais mal faz aos brasileiros.

Escolas de samba poderosas e blocos de rua de todo quilate espalhados pelos quatro cantos do país deram a seus gritos de guerra, nos últimos dias de folia, ares de brandos “contra tudo o que está aí”. Que não haja dúvida: é a maneira mais certeira de manter tudo como está. A crítica que não nomina os bois certos não se presta a transformar a realidade.

Em alguns dos sambas-enredo mais celebrados deste ano, a corrupção foi tratada como geleia geral: lambuza a todos indistintamente. Será verdade? Aqueles que protagonizaram os maiores escândalos da nossa história, flagrados e enxotados do poder, devem ter adorado: o samba, esse nosso orgulho cultural, igualou a todos na lama, o refrão que eles mais gostam de cantar.

É curioso, para dizer o mínimo, que o ápice da roubalheira flagrada nos anos recentes não tenha obtido das passarelas a mesma atenção que outros malfeitos mereceram neste ano. Não se tem notícia de enredo, samba ou marchinha de sucesso tratando do mensalão, do petrolão, dos tríplex à beira-mar, dos sítios com pedalinhos, das falcatruas com o orçamento federal, da quebradeira que se abateu sobre as contas públicas.

Quando surge, a crítica é indiscriminada, são todos culpados e ninguém pode ser punido. Quando todos pecam, ninguém pode ser condenado: a ética do Carnaval parece escorrer para os tribunais, e, pelo jeito, espera-se que transborde até as urnas. O protesto do momento nas passarelas do samba, portanto, mais deseduca do que constrói, mais inocenta do que castiga.

Quando foi mais incisiva e pessoal, a reprovação de escolas de samba organizadas em alas de rigor cronometrado mirou alvos errados. Mistificou, ao invés de esclarecer. As reformas necessárias foram igualadas a mazelas seculares, protestos legítimos foram caricaturados, heranças cartoriais foram retratadas como salvaguarda do povo. A lambança tornou-se generalizada. Carnaval assim não é ótimo para quem não quer mudar nada?

Os brasileiros devem, precisam manter o espírito crítico, a inquietude, a capacidade de se indignar. Mas ela não pode ser meramente genérica, sorrateiramente indiscriminada, oportunamente indecifrável. O mau estado do país tem responsáveis com nome e sobrenome, mas estes ficaram fora do enredo dos sambas que se ouviu pelo país nos últimos dias de folia. Os foliões – ou, mais precisamente, bandos de militantes fantasiados – carnavalizaram a corrupção.

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