Há tempos se ouve e
se lê que o brasileiro está satisfeito com o emprego que lhe é oferecido, com a
prestação do financiamento que não lhe aperta o bolso, com a sensação de
bem-estar que o dinheiro compra. Há tempos se diz que, tudo mais constante, o
brasileiro não busca nada além disso; basta-lhe a sombra e a água fresca que a
carteira pode garantir.
O grito das ruas diz
outra coisa. Revela uma gente cansada de ver que as mazelas do país se
aprofundam, que o vale-tudo é transformado em prática corriqueira, que a
corrupção, a esperteza e o malfeito são aceitos e impostos como regra do jogo.
O brasileiro está mostrando que, mais que o conforto monetário, preza valores, quer
que a dignidade, a seriedade e o respeito prevaleçam. Isso não tem preço.
Há anos, somos
tratados como um país de consumidores, não um país de cidadãos com direitos a
serem respeitados e deveres a serem cumpridos. Há anos, a dignidade foi resumida
a carnês de financiamento, a acesso a shoppings centers. Viramos um país que se
contenta em consumir o presente sem construir e investir no futuro. A isso, as ruas
dizem “não”.
As pessoas parecem ter
se enchido do marketing cor-de-rosa, da publicidade enganosa, da propaganda
mentirosa que mostra um Brasil que só existe em anúncios de margarina. Resolveram
se indignar e mostrar que o país que elas querem não é este; o Brasil do futuro
é outro, diferente e não cabe na camisa de força na qual o discurso oficial quer
aprisioná-lo.
A voz dos
manifestantes mostra que os que resolveram ocupar as ruas não aceitam mais ver
a corrupção tratada com naturalidade pelos seus governantes. Segundo pesquisa
do Datafolha divulgada
hoje, esta era a razão manifestada por 38% das 65 mil pessoas que protestaram anteontem
em São Paulo.
São pessoas que buscam
demonstrar que não toleram ver o dinheiro pago em impostos sendo desperdiçado
em más gestões, usado para beneficiar amigos do rei e da rainha, torrado em
estádios – já são R$ 28 bilhões e serão bem mais – enquanto escolas apodrecem e
postos de saúde e creches continuam só na promessa.
Este grosso caldo de
rejeição e insatisfação encontrou na alta disseminada dos preços um catalisador
poderoso. Um povo que se amedrontou com o monstro da hiperinflação e que lutou muito
por reconquistar a estabilidade de sua moeda não aceita ver a carestia voltar a
pôr em risco o conforto do seu presente e o direito de planejar o seu futuro.
Além de respeito, é necessário
ter humildade ao tentar entender a mensagem das manifestações. Seus protagonistas
parecem querer deixar claro que prescindem de tradutores, de intérpretes. Querem
ter sua voz ouvida. É bom que seja assim, respeitado o sagrado estado democrático
de direito e rejeitadas as ações violentas, como as vistas ontem em algumas
capitais do país.
É repulsivo que alguns
busquem apropriar-se de movimento tão espontâneo e autêntico. Como tenta fazer,
por exemplo, o PT e governo federal em sua estratégia de metamorfosear-se e irmanar-se
às manifestações como se não fosse também alvo dos que protestam.
Como quem se
inspirou em Lampedusa e seu “O leopardo”, a presidente Dilma Rousseff disse
ontem que seu governo também quer a mesma mudança que emana das ruas. Só se for
para que tudo fique como está.
Segundo O Estado de S.Paulo, até o anúncio de novos programas para beneficiar a
juventude já está em estudo pelo governo petista, talvez na crença obtusa de
que o grito da moçada será calado com migalhas e ilusionismos.
O PT e seus líderes querem
tratar a voz aguda das multidões de maneira oportunista. Provavelmente, creem
que é possível manejar a insatisfação por meio de reuniões de seus “estrategistas”.
Revelam não ter compreendido nada e, pior ainda, demonstram que continuam a
crer que com sua esperteza são capazes de transformar a massa em matéria-prima
para suas manobras. Juntam-se a cegueira e a surdez.
A pauta dos
manifestantes pode ser por demais ampla, difusa e às vezes até confusa. Mas baseia-se
em insatisfações que se referem a fatos reais, a problemas cotidianos, a dificuldades
diárias. Quando o povo, enfim, se manifesta por si próprio, cabe a quem
governa, a quem tem o poder de decidir e intervir no futuro do país respeitá-lo,
ouvi-lo e agir. É o primeiro passo para que mudanças verdadeiras aconteçam.
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